Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda.
Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti.
Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil,
fiquei sem poder chorar, quando caí.
Algo Nu
Cecília Meireles
quarta-feira, 18 de julho de 2012
em
8:26:00 PM
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Galeria de Quadros de Frida Kahlo
quinta-feira, 15 de abril de 2010
em
9:04:00 AM
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Um bom link com imagens de quadros da Frida (e outros pintores, se procurar) com resolução até razoável.
Reunião de Poesias de Drummond
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
em
5:13:00 AM
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Esses dias estive lembrando de Drummond. Subitamente e sucessivamente me veio saudade de certos poemas que me tornaram a memória.
Consolo na praia
Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
Destruição
Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir mas o existido
continua a doer eternamente.
Cortar o tempo
"Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a
que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no
limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e
entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra
vez, com outro
número e outra vontade de acreditar que daqui pra
diante vai ser diferente"
OBS: Eu não sei o que é isso, se é realmente um poema, já vi mencionarem como "enxerto", então não sei da veracidade disso, que é tão difundido como de Drummond. Muito cuidado numa análise.
A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me'?Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
As cinco mulheres de todo homem
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
em
5:17:00 AM
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Texto muito bom retirado daqui: Hipopocaranga
Uma viagem etílico-filosófica sobre a presença feminina na vida dos homens.
Paulo Rebêlo // agosto.2002
Outro dia pude comprovar mais uma irredutível prova da burrice masculina. Sentado à mesa no bar do Carranca – aqui do lado de casa e um dos poucos que ainda descolam uma pendura – um colega chamado Ambrósio (nome fictício) puxou a carteira e tirou um pedaço de papel. Desdobrou-o e notei que era quase uma folha inteira, com uma lista de nomes escritos em letra miúda e com observações esmiuçadas. Tipo uma planilha. Era a lista de todas as mulheres que o Ambrósio já, digamos assim, teve algum tipo de relacionamento. Relacionamento puramente carnal, há de se explicar.
Durante minutos, o Super Ranzinza que vos escreve quase cai da cadeira de tanto zoar, mas o momento hilário não durou o
suficiente para conter aquela ponta de desafio: olhar a lista e dar uma sacudida cerebral para tentar recordar, desde os tempos áureos (era pré-ranzinza mesozóica), se o conta-giros tinha condições de concorrer com o A4 do Ambrósio.Ao menos o Ambrósio foi ético. Não colocou o sobrenome das pobrecoitadas, apenas o primeiro nome ou apelido, junto a uma observação rápida – para que ele pudesse lembrar exatamente quem era quem e, claro, contar aos amigos de bar.
Quando o assunto é mulher, homem geralmente é tão burro que não pára um pouco para pensar que qualquer lista do gênero não tem certificação digital ou registro em cartório. Ou seja, oficialmente não vale nada, pode ter sido forjada e, como não tem sobrenome – para a gente procurar na lista telefônica e ligar para conferir – fica ainda mais fácil inventar e sair escrevendo qualquer coisa. E claro que o Super Ranzinza não usou esses argumentos como desculpa para não tentar comparar o conta-giros com a folha A4, ciente de que perderia feio.
Mas sabe como é, em mesa de bar tudo é verdade. E como todo assunto no botequim tem validade de uns quinze minutos, antes que outro totalmente diferente venha à tona, o tema “lista perereca”, como o Ambrósio gosta de chamar o pedaço de papel, perdeu a graça.
Foi quando o Carranca se aproximou. Com aquele olhar típico de “ah, essa juventude boêmia…”, o garçom mais feio da cidade sentou-se à mesa e iniciou o momento de reflexão zen-bundista. E quando o Carranca fala, todos põem o copo na mesa para ouvir. Afinal, são 70 anos de experiência entre o mundo feminino e o mundo boêmio – só de garçom, podem colocar uns 50 anos de praça.
Para os empulhados que vivem levando foras e mais foras do mulherio, o Carranca é para nós o que o Mestre dos Magos era para a turma da Caverna do Dragão: sempre a sábia palavra. Horas e garrafas depois, chegou-se a uma conclusão aterrorizante. Daquelas que no dia seguinte, ninguém quer lembrar. Daquelas que até o Carranca estrilou: a “lista perereca” do Ambrósio não vale nada.
O fato é que não importa quantas pererecas tenham pulado na fazenda, mas na vida de um homem só existem ou existiram cinco mulheres que fazem toda a diferença:
1 – A mulher que você mais amou na vida, e em alguns casos continua amando até hoje e tem vergonha de admitir, mas que casou com outro e/ou lhe deu um chute na bunda e não quer nem saber que você existe;
2 – A mulher que você teve certeza que seria a pessoa perfeita para o resto de sua vida, com aquelas características que todo homem sonha numa mulher – apaixonada, meiga, engraçada, inteligente, bonita, bom emprego, independente, que faz cafuné quando você chega bêbado em casa, entre outros atributos – mas que por um motivo até hoje inexplicável, você não quis mais saber dela e acabou o relacionamento… para anos depois se arrepender quando descobrir que mudou de sobrenome;
3 – A mulher que foi a melhor de todas na cama, aquela que nunca estava com dor de cabeça, que fez você fazer as maiores loucuras – pense em elevadores, estacionamentos, boates lotadas, banheiros em festas de aniversário dos sobrinhos, casa da sogra e mesa do escritório – mas que você também não conseguiu manter o relacionamento, pois geralmente lembrava da número 1 ou da número 2, e então percebia que a 3 nunca seria igual;
4 – A mulher que de repente apareceu na sua vida e você pôde jurar para si mesmo que ela *seria* a mulher ideal e *faria* você esquecer das outras, pois você conseguiu identificar características da 1 e da 2, mas que simplesmente não conseguiu conquistá-la e/ou ela não viu a menor graça em você – e depois que descobriu suas intenções, tomou doril antes mesmo de saber se ela tinha algo da 3… ;
5 – A mãe dos seus filhos. É a mulher que, na eventualidade de não ser a 1, a 2 ou a 3 na sua vida, por ser a mãe dos seus filhos está acima de qualquer classificação – a não ser na hora de o juiz determinar o pagamento da pensão alimentícia.
E pronto. O resto… ah, o resto! As outras vão e voltam, passam e despassam, mandam e desmandam, choram e riem, gritam e beijam, casam e descasam, e continuam lá, firmes e fortes – às vezes nem tão “firmes” assim- mas todas com a devida importância e os devidos ensinamentos.
Mesmo que essa importância seja, no caso do Ambrósio, mais um nome para a lista. Em todas essas mulheres você sempre irá procurar:
a) preencher o vazio deixado pela 1;
b) reverter o arrependimento deixado pela 2;
c) imaginar que ela tope as loucuras da 3;
d) ter esperança de que um dia ela se transforme na 4, sem o doril;
e) torcer que não vire a 5, porque você é homem (logo, é burro) e ainda sonha com a 1.A matemática é simples. Ao chegar na letra “e”, outra mulher pode aparecer e aí é só recomeçar o ciclo, da letra “a” até a letra “e” e assim por diante, em loop infinito.
Loop infinito até você encontrar a 6, que será uma espécie de mulher paraquedista-transgênica: caiu do céu e compilou um pouquinho das 1-5. E, diante das circunstâncias (ou da sua idade…) ela poderá ser responsável por fazer com que você se ache um homem realizado, case com ela e seja feliz – até o dia em que a ciência invente uma máquina do tempo para você tentar:
- corrigir os erros cometidos com a 1;
- descobrir o que aconteceu com a 2;
- aproveitar um pouco mais os momentos com a 3;
- mudar as táticas na hora de conhecer a 4;
- nunca conhecer a 5.Observações finais – esta lista das cinco mulheres não tem registro em cartório, muito menos certificação digital. Não é universal, mas é adaptável a diferentes situações em CNTP. Talvez, possa até mesmo mudar de nome e gênero para: “os cinco homens de toda mulher”.
Da Timidez
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
em
3:04:00 AM
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Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado, quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se explicar. Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico, só alguém que se acha muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade, porque só ele acha que se sentir inferior é doença.
Todo mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais salientes. Defendo a tese de que ninguém é mais tímido do que o extrovertido. O extrovertido faz questão de chamar atenção para sua extroversão, assim ninguém descobre sua timidez. Já no notoriamente tímido a timidez que usa para disfarçar sua extroversão tem o tamanho de um carro alegórico. Daqueles que sempre que-bram na concentração. Segundo minha tese, dentro de cada Elke Maravilha existe um tímido tentando se esconder e dentro de cada tímido existe um exibido gritando "Não me olhem! Não me olhem!" só para chamar a atenção.
O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo.
O tímido vive acossado pela catástrofe possível. Vai tropeçar e cair e levar junto a anfitriã. Vai ser acusado do que não fez, vai descobrir que estava com a braguilha aberta o tempo todo. E tem certeza de que cedo ou tarde vai acontecer o que o tímido mais teme, o que tira o seu sono e apavora os seus dias: alguém vai lhe passar a palavra.
O tímido tenta se convencer de que só tem problemas com multidões, mas isto não é vantagem. Para o tímido, duas pessoas são urna multidão. Quando não consegrie escapar e se vê diante de uma platéia, o tímido não pensa nos membros da platéia como indivíduos. Multiplica-os por quatro, pois cada indivíduo tem dois olhos e dois ouvidos. Quatro vias, portanto, para receber suas gafes. Não adianta pedir para a platéia fechar os olhos, ou tapar um olho e um ouvido para cortar o desconforto do tímido pela metade. Nada adianta. O tímido, em suma, é uma pessoa convencida de que é o centro do Universo, e que seu vexame ainda será lembrado quando as estrelas virarem pó.
23/02/95Luis Fernando Veríssimo
Retirado originalmente deste link. Este por sua vez extraiu do livro "Comédias da Vida Pública, L&PM Editores, pp. 324-325."
Cômodo ou Comodismo
sábado, 5 de setembro de 2009
em
4:02:00 PM
Categoria: Minha poesia, Remotos Poemas - 0 comentários
Essa conta como poesia antiga minha, que deveria ter vindo para cá há muito tempo, que eu postei no "Quem sou eu" do Orkut. Mas ao invés disso foi para o Fragmentose, não sei bem porque.
Ter raiva é muito cômodo.
O sentimento de vingança é muito cômodo.
O egoísmo também é muito cômodo.
E o preconceito é muito cômodo.
(Não saber o que é - ou quando
[se tem - preconceito é muito cômodo.)
Não perdoar é muito cômodo.
Mandar alguém se fuder é
cômodississississimo.
Guardar rancor é cômodo.Evitar tudo isso é braçal.
Não sentir é duríssimo.
Conquistar tais sublimações
[consiste numa nobreza que parece ser inatingível.
É também muito fácil falar, sugerir,
quando se julga, tais
[caminhos, melhores alternativas.
mas tentemos!
Por ser incomum, pouco usual,
Parecido levar prum lugar
[de mais paz do que esse atual.Data +/-: 13 de novembro de 2007
atualizado em 16 de fevereiro, com uma nova versão...
Ter raiva é muito cômodo.
O sentimento de vingança é muito cômodo.
O egoísmo também é muito cômodo.
E o preconceito é muito cômodo.
(Não saber o que é - ou quando
[se tem - preconceito é muito cômodo.)
Não perdoar é muito cômodo.
Mandar alguém aquele lugar é
cômodississimo.
Guardar rancor é cômodo.
Evitar tudo isso é braçal.
Não sentir é duríssimo!
Conquistar tais sublimações
[consiste numa nobreza que parece ser inatingível.
É também muito fácil falar, sugerir,
quando se julga, tais
[caminhos, melhores alternativas.
Mas tentemos!
Por ser incomum, pouco usual,
Parecido levar prum lugar
[de mais paz do que esse atual.
Texto sobre alguns apócrifos da Clarice Lispector
terça-feira, 17 de fevereiro de 2009
em
3:37:00 AM
Categoria: Texto Alheio - 0 comentários
Muito explanativo sobre apocrifos na internet.
Uma brincadeira de mau gosto com Clarice Lispector
Betty Vidigal
Trata-se de uma brincadeira engenhosa, embora mal redigida: um “poema” – assim o chamam os remetentes – cujo sentido se altera drasticamente quando lido de baixo para cima.
A rigor, não se pode dizer que seja um poema. É apenas um texto dividido em algumas linhas. Mas, por assim estar dividido e por falar sobre amor, acreditam alguns que se trate de um “poema”.
Se esse fosse o único equívoco, seria até divertido. Apesar dos erros de sintaxe, o texto tem o mérito de ser surpreendente. Quem o envia, no entanto, não se contenta com surpreender. A piadinha chega acompanhada de comentários sobre sua “alta qualidade literária” . E pior: garantem, hoje, que foi Clarice Lispector quem a perpetrou.
Essa de atribui-la a Clarice é novidade. Na primeira vez em que recebi esse e-mail, há uns quatro anos, a autoria vinha imputada a “autor desconhecido”. Como achei engraçado e original, consertei as frases, deixando-as mais corretas e mais coloquiais, e passei o brinquedo adiante.
Ao longo dos anos seguintes, ele voltou a aparecer algumas vezes em minha caixa de entrada – sem as correções que fiz, o que mostra que essas alterações não “pegaram”. E, de dois anos para cá, tem circulado, sabe-se lá por que, como sendo de autoria de Clarice.
Agora os enviadores de e-mails não falam mais das características histriônicas daqueles “versos”. Em vez disso, tecem elogios ao talento literário de quem os escreveu e à beleza da língua portuguesa, que permite tais malabarismos – como se eles não fossem possíveis em qualquer língua.
Aí vai o poemeto objeto destes comentários. Não separo aqui os versos por barras, porque a brincadeira consiste em lê-los do fim para o começo, depois que se chega ao fim.
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
Pronto. Leram? Agora leiam os “versos” em ordem inversa, de baixo para cima. O sentido das frases se altera; o que soava como uma “declaração de desamor” torna-se uma confissão de amor eterno. Divertido, mas se Clarice fosse brincar disto não teria repetido, deselegante e desnecessariamente, a palavra “jamais”. Nem juntaria aqueles dois gerúndios, “mentindo dizendo”. Há muitas formas de contornar isso. [1]
Escarafunchei a internet com a profundidade que permitem os mecanismos de busca. Há treze sites com versões deste texto em espanhol. Em inglês, apenas quatro, sendo que dois deles apresentam também o “original” em português. Lamento dizer que nesses dois sites (da UCLA[2]), Clarice Lispector era citada como a autora. Em português, há 444 referências, a maior parte delas em endereços no Brasil. Apenas 163 não o atribuem a Clarice. (No site http://geocities.yahoo.com.br/marjori_rj/outros_poetas.html , por exemplo, quem aparece como autor é Carlos “Drummont” de Andrade. )
Na última vez em que o recebi – no dia 16 de abril deste ano – o título do e-mail era “poema genial”. À guisa de apresentação, o remetente dizia: “De facto, a língua de Camões é única. Leia até o fim.” A grafia da palavra “facto” atesta a origem portuguesa dessa remessa. Mas, como portugueses não usam os gerúndios da forma como nós usamos, e dados os gerúndios presentes no texto, certamente o português que o enviou recebeu-o de algum(a) brasileiro(a).
Apesar do pequeno número de “sítios” em espanhol, inclino-me a acreditar que o texto deve ter sido escrito originalmente nessa língua. Todos esses sites apresentam-no como “un chiste”[3] – que de fato é – e nenhum dá crédito de autoria a ninguém. Pena: o verdadeiro autor do “chiste”, ainda que não se trate de alta literatura, merece reconhecimento por sua inventividade. Em espanhol, as frases soam coloquiais, não parecem retorcidas, como em português. São coisas que se poderia dizer com naturalidade.
O título passa a ser a frase inicial “No te amo más”.[4] Prossegue com “Mentiría diciendo que / todavía te quiero como siempre te quise.”. (Ah! Viram? Aqueles dois gerúndios seguidos desaparecem, em espanhol...!) E a penúltima frase é “Lo siento, pero debo decir la verdad”. Esta expressão, “Lo siento, pero”, em espanhol, é muito razoável. Em português, dizemos “desculpe, mas..” ou “sinto muito, mas...”. Em questões sérias, talvez digamos “perdoe-me”. Este “sinto”, assim, sozinho, desacompanhado do “muito”, tem cara de ser tradução do espanhol.
Clarice nunca publicou poemas. O site do Jornal de Poesia, do Soares Feitosa, traz uma justificativa para os que circulam pela net. Com o título de “Poemas que (não) são de Clarice”, vem a explicação do Feitosa: “Os poemas desta página são resultado do arranjo em versos, feito pelo padre Antônio Damázio [...], de textos em prosa da extraordinária escritora Clarice Lispector. Nesta saudável mania de todo-mundo-copiar-todo-mundo-sem-citar-a-fonte, tem umas "pages" por aí publicando estes textos sem lhes indicar a parceria do padre e como se fossem poesia originariamente feita por Clarice. É bom que se diga que Clarice, apesar de escrever de forma não versificada, era poeta verdadeira, pois como diz Benedicto Ferri de Barros não basta ao texto estar quebrado em linhas para ser poesia. Clarice fazia poesia sem quebrar as linhas; esta é a homenagem que lhe presta o Jornal de Poesia, quando incentivei o padre Damázio a levar o projeto Clarice adiante. Uma pena que o padre sumiu, não sei onde lhe andam as alpercatas, porque seria muito válido pedir a ele que indicasse a origem dos textos que arranjou de forma tão feliz.”[5]
Pessoalmente, sou contra. Qualquer pessoa pode dividir em versos a prosa poética de Clarisse; não é preciso nenhum talento especial para dividi-los: os versos estão implícitos no ritmo do texto. Um exemplo retirado de Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance:
“O relógio acordou em tin-dlem sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o que? roupa-roupa-roupa. Não não.”[6]
Ou este outro trecho do mesmo romance: “– Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e úmida debatendo-se dentro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que devo dizer? Inspirai-me, eu tenho quase tudo; eu tenho o contorno à espera da essência; é isso?”[7]
Claro que este tipo de conteúdo não interessa ao enviador-padrão de e-mails. Esse quer “lições de vida” ou algo que faça rir.
Sim: circula também na web uma “lição de vida” com a assinatura apócrifa de Clarice. “Há momentos na vida em que sentimos tanto a falta de alguém que o que mais queremos é tirar esta pessoa de nossos sonhos e abraçá-la. Sonhe com aquilo que você quiser. Vá para onde que ir. Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só temos uma chance de fazer aquilo que queremos. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem fazer o melhor das oportunidades que aparecem em seus caminhos. A felicidade aparece para aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas. O futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido. Você só terá sucesso na vida quando perdoar os erros e as decepções do passado. A vida é curta, mas as emoções que podemos deixar, duram uma eternidade. A vida não é de se brincar porque um belo dia se morre.”
Encontram-se estas frases, separadamente, em alguns sites de “pensamentos”. Todas juntas, aparecem em 1620 sites, associadas ao nome de Clarice.
Mas – sempre a mesma questão: como provar que alguém não escreveu algo? No caso de autores mortos, somente a intimidade com seu estilo pode levar à percepção de que algo está sendo impingido ao público, conspurcando a obra do escritor. Toda vez que recebo isso, faço questão de avisar ao remetente que esse amontoado de sabedoria popular não pode ser de Clarice, não tem nada a ver com o que ela escrevia.
Numa dessas vezes, o amigo que me mandou o e-mail resolveu pôr minhas ressalvas à prova. Mandou o texto, acompanhado de meu e-mail, ao Assis Brasil, que é seu primo. Eis a resposta que recebeu: “Olha, primo: se este texto é de Clarice, então eu sou o imperador da China. Jamais a Clarice iria escrever essa sucessão de bobagens, trivialidades e lugares-comuns. Ela era uma grande escritora.”
Pois é. Quem conhece, sabe que não pode ser dela.
O difícil é – continua sendo – convencer os outros.
Não duvido que a frase final seja de Clarice Lispector. Talvez seja. Talvez o final seja uma citação. Como soe acontecer, o pobre autor citado torna-se uma vítima do texto inteiro. “A vida não é de se brincar porque um belo dia se morre” tem um tom lispectoriano.
O resto, não.
[1] Sugiro uma; há dezenas de possibilidades: “Não te amo mais. / Eu estaria mentindo se dissesse que / Ainda te quero como sempre quis. / Tenho certeza de que / Nada foi em vão. / Hoje sei que / Você nada significa para mim. / Não poderia dizer que / Ainda sinto aquele imenso amor. / Já te esqueci! / E jamais direi que / Eu te amo! / Sinto muito, mas tenho que dizer-te a verdade: / É tarde demais...” Funciona da mesma forma: se os versos são lidos em ordem inversa, o sentido também se inverte.
[2] Universidade da Califórnia – Los Angeles[3] uma piada[4] Em português, o título tornou-se, com o passar dos anos, “Poema Genial”.[5] http://www.secrel.com.br/jpoesia/cli.html[6] Perto do Coração Selvagem, Clarice Lispector, pg.9. Editora A Noite, Rio de Janeiro, 1942.[7] idem, pg. 72.
Extraido daqui.